este artigo celebra o aniversário de Gilberto Gil, nome de escritor de Gilberto Passos Gil Moreira, nascido no vigésimo sexto dia de Junho do ano de 1946, na capital da Bahia. na música tupiniquim, Gil é a outra metade do inconsciente coletivo brasileño da virada das décadas de 1960 para 1970 – a outra metade logicamente significando Caê, seu meio-irmão de alma & percurso.
filho primogênito do médico José Gil Moreira & da professora primária Claudina Passos Gil Moreira, neto de dona Lídia Moreira, a família vivia num ir & vir da capital para o interior, do bairro do Tororó para cidades como Ituaçú, resultado da procura do provedor por emprego.
aos 9 anos de idade ganha o primeiro instrumento musical, um acordeão – a fabulosa sanfona de outros recantos. por muito tempo, sua principal influência popular foi Luiz Gonzaga, por achar assemelhado o Brasil que Luiz Gonzaga cantava protagonizando suas letras. aos 12 anos organiza “Os desafinados”, primeira reunião musical de amigos. por volta dos 13 anos já é apadrinhado no grupo de Dorival Caymmi & Jorge Amado, seguindo a correnteza lógica da música que vinha com as areias das Dunas & o marulhar do Oceano. em 1958 João Gilberto lança o paradigmático “Chega de saudade”: está marcada assim a santíssima trindade sob a qual Gil vai erigir sua obra.
foi também em 1958 que Jorge Amado publicou o livro que o alçou ao mundo, “Gabriela cravo e canela”. em 1960, Gil adentra a Universidade Federal da Bahia, de onde sai com o diploma de bacharel em administração pública, em 1964. o diploma o leva para São Paulo, a capital-cinza, para trabalhar como estagiário de publicidade na Gessy-Lever, mas seus contatinhos de faculdade (tais como José Capinan, Rogério Duprat, o próprio Caê & o grupo Os Mutantes) insistem em levá-lo ao mundo musical.
chega o Maio de 1967. Gilberto Gil publica “Louvação”, primeiro disco de longa-duração – saíram como divulgação em single as faixas “Procissão” & “Ensaio geral”. produção da Philips/RCA de João Neto, com arranjos de Dori Caymmi, Carlos Monteiro Souza, Bruno Ferreira, nas letras parceirando com Caê, Capinan, Torquato Neto, João Augusto, o disco traz 14 faixas em que o autor visita suas raízes nordestinas, o carnaval, o frevo&o baião, as baladas dos anos cinqoenta, a bossa nova, o samba. talvez o passo mais ousado de todo o disco seja a faixa três deste disco, “Lunik 9” – parceria com Torquato Neto. em “Água de meninos”, é parceria com Caê, que a cantava como “Beira-mar”, música que narra um incêndio & pedra fundamental do que há de comum entre os dois – assim como Gilberto Gil, Caê sobreviveu ao horror da raiva hidrofóbica dos verdugos! vale a pena lembrar: este era só o disco de estréia, em uma carreira que contabiliza 27 discos de estúdio, até o momento de publicação deste artigo. em Agosto deste mesmo ano de 67, acontece o terceiro festival de Música da Rede Record, de onde Gil sai laureado com o segundo lugar & a faixa final do seu próximo disco, “Domingo no parque”.
o disco seguinte, “Frevo rasgado” (Maio de 1968), é considerado a pedra fundamental da Tropicália, porque une de vez fotógrafos, musicistas, coreógrafos, pintores & escritores querendo digerir “Sargeant Peppers” para aqueles que vivem ao Sul da linha do Equador: “Luzia Luluza” é a faixa principal deste Manifesto; e onde “Domingo no parque” funciona como introdução ao léxico do grupo; nos dias de hoje, este disco finaliza com “Questão de ordem”, que só foi adicionada à playlist para o relançamento comemorativo das bodas de ouro do disco, numa total compactuação com as guitarras elétricas ou quaisquer outros instrumentos musicais.
em 1967, Gil comete casamento com a da filha de Dorival e de dona Stella Maris, Dinahir Caymmi – Nana, a primogênita, irmã mais velha de Dori e de Danilo. é decretada sua prisão em Dezembro de 1968, quando Gil tinha um programa na televisão & encontrava-se em excursão pelo país com seus amigos tropica-valentes. uma presença era constante no palco: a bandeira nacional com a intervenção de Hélio Oiticica, “Seja marginal, seja herói”, transformam Caê e Gil em prêmios principais do Ato Institucional número cinco: os dois são presos alguns dias depois do Natal de 1968, e amarguram até a Quarta-feira de Cinzas em um quartel, no Rio de Janeiro, quando são liberados para prisão domiciliar. suportam esta situação até Julho de 1969, quando realizam um show de despedida do Brëzyl no Teatro Castro Alves, optando por um exílio nas Zooropas, primeiro em Lisboa, depois em Paris, finalmente fixando residência em Londres.
para o país, Gil retornará somente no ano de 1972. dono de uma carreira musical mundialmente premiada, amplia sua ação ao plano político, agindo diretamente na vida das pessoas para quem cantava: assume a vereança em sua cidade de origem no período 1989 ~1992; em 1997, é condecorado com a Ordem Nacional ao Mérito do governo francês; em 1999, é nomeado “Artista pela Paz” pela UNESCO; finalmente, de 2003 a 2008, trabalha como Ministro da Cultura, implementando mais de 2500 Pontos de Cultura em 1122 cidades do país.
para o exercício de tradução de hoje escolhi o 13o disco de Gil, “Parabolicamará”, de 1992. neste disco, “Um sonho” é a faixa que primeiro puxou minha atenção, onde o eu-lírico narra um sonho que teve, um discurso para muitos gravatas importantes em um grande fórum mundial – um sonho que lhe veio quase 13 anos antes de acontecer de verdade!
PARABOLICAMARÁ (lançamento de Janeiro de 1992, Warner Music)
A.01-MADALENA (ENTRA EM BECO SAI EM BECO) (Isidoro)
Fui passear na roça
Encontrei Madalena
Sentada numa pedra
Comendo farinha seca
Olhando a produção agrícola
E a pecuária
Madalena chorava
Sua mãe consolava
Dizendo assim
Pobre não tem valor
Pobre é sofredor
E que ajuda é Senhor do Bonfim
Entra em beco sai em beco
Há um recurso Madalena
Entra em beco sai em beco
Há uma santa com seu nome
Entra em beco sai em beco
Vai na próxima capela
E acende uma vela
Pra não passar fome
A.02-PARABOLICAMARÁ (Gilberto Gil)
Antes mundo era pequeno
Porque Terra era grande
Hoje o mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
De tamanho da antena parabolicamará
Ê, volta do mundo camará
Ê, mundo dá volta, camará
Antes longe era distante
Perto só quando dava
Quando muito ali defronte
Eo horizonte acabava
Hoje lá trás dos montes dende casa camará
De jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
De avião o tempo de uma saudade
Pela onda luminosa
Leva o tempo de um raio
Tempo que levava rosa
Pra aprumar o balaio
Quando sentia que o balaio ia escorregar
Esse tempo nunca passa
Não é de ontem nem de hoje
Mora no som da cabaça
Nem está preso nem foge
No instante que tange o berimbau, meu camará
Esse tempo não tem rédea
Vem nas asas do vento
O momento da tragédia
Chico Ferreira e Bento
Só souberam na hora do destino apresentar
A.03-UM SONHO (Gilberto Gil)
Eu tive um sonho Que eu estava certo dia
Num congresso mundial Discutindo economia
Argumentava em favor de mais trabalho, mais
empenho, mais esforço, mais controle, mais valia
Demonstrei de mil maneiras
Como que um país crescia
E me bati pela pujança econômica
Baseada na tônica da tecnologia
Apresentei estatísticas e gráficos
Demonstrando os maléficos efeitos da teoria
Principalmente a do lazer, do descanso
Da ampliação do espaço cultural da poesia
Disse por fim para todos os presentes
Que o pais só vai pra frente se trabalhar todo dia
Estava certo de que tudo o que eu dizia
Representava a verdade pra todo mundo
Foi quando um velho levantou-se da cadeira
E saiu assoviando numa triste melodia
Que parecia um prelúdio bachiano
Um frevo pernambucano, um choro do Pixinguinha
E no salão todas as bocas sorriram,
Todos os olhos me olharam, todos os homens saíram
Um por um,
Um por um,
Um por um,
Um por um.
Fiquei ali naquele salão vazio,
de repente senti frio e reparei que estava nú!
Me despertei, assustado e ainda tonto,
Me levantei e fui de pronto pra calçada ver o céu azul
E os operários escolares que
passavam Davam risada
e gritavam
Viva o índio do Xingú!
Viva o indio do Xingú,
Viva o índio do Xingú,
Viva o índio do Xingú.
A.04-BUDA NAGÔ (Gilberto Gil)
Dorival é ímpar
Dorival é par
Dorival é terra
Dorival é mar
Dorival tá no pé
Dorival tá na mão
Dorival tá no céu
Dorival tá no chão
Dorival é belo
Dorival é bom
Dorival é udo
Que estiver no tom
Dorival vai cantar
Dorival em CD
Dorival vai smbar
Dorival na TV
Dorival é um buda nagô
Filho da casa real da inspiração
Como príncie principiou
A nova idade de ouro da canção
Mas um dia Sanhô
Deu-lhe a iluminação
Lá na beira do mar (foi)
Na praia de armação (foi não)
Lá no jardim de Alá (foi)
Lá no alto sertão (foi não)
Lá na mesa de um bar (foi)
Dentro do coração
Dorival é Eva
Dorival é Adão
Dorival é lima
Dorival limão
Dorival é a mãe
Dorival é o pai
Dorival é o peão
Balançamas não cai
Dorival é um monge chinês
Nascido na Roma negra, Salvador
Se é que ele fez fortuna ele a fez
Apostando tudo na carta do amor
Azes, damas e reis
Ele teve e passou
Teve o mundo aos seus pés
Ele viu e nem ligou
Seguidores fiéis
E ele se adiantou
Só levou seus pincéis
A viola e uma flor
Dorival é índio
Desse que anda nú
Que bebe garapa
Que come beijú
Dorival no Japão
Dorival samurai
Dorival é anação
Balança mas não cai
A.05-SERAFIM (Gilberto Gil)
Quando o agogô soar
O som do ferro sobre o ferro
Será como o berro do carneiro
Sangrado em agrado ao grande Ogum
Quando a mão tocar o tambor
Será pele sobre pele
Vida e morte para que se zele
Pelo orixá e pelo ogum
Kabiêcile vai cantando o ijexa pro pai Xangô
Eparrei oraieié pra Iansã e mãe Oxum
Obabi olorum kozi como deus não há nenhum
Será sempre axé
Será paz será guerra Serafim
Através das travessuras de Exu
Apesar da travessia ruim
Há de ser assim
Há de ser sempre pedra sobre pedra
Há de ser tijolo sobre tijolo
E o consolo é saber que não tem fim
B.01-QUERO SER TEU FUNK (Gilberto Gil, De e Liminha)
Quero ser teu funk
Ja sou teu fa numero um
Agora quero ser teu funk
Ja sou teu fa numero um
Funk do teu samba
Funk do teu choro
Funk do teu primeiro amor
Rio de Janeiro
Bela Guanabara
Quem te viu primeiro pirou
Chefe Arariboia que andava
De Araruama a Itaipava
Nao cansava de te adorar
Depois te fizeram cidade
Te fizeram tanta maldade
E um Cristo pra te guardar
Funk do teu morro
Funk do socorro
Que o pivete espera de alguem
Rio de Janeiro
Sou teu companheiro
Mesmo que nao fique ninguem
Mesmo que Sao Paulo te xingue
Porque te cobica o suingue
O mar, a preguica, o calor
Lembra da Bahia que um dia
Ja mandou Ciata, a tia
Te ensinar kizomba nago
Funk da madrugada
Funk qualquer hora
Funk do teu eterno fa
Funk do portuga
Que te amava outrora
Agora funk da turista alema
Rio de Janeiro, Rocinha
Sempre a te zelar, Pixinguinha
Jamelao, Vadico e Noel
Funk sao teus arcos da Lapa
Funk e tua foto na capa
Da revista amiga do ceu
B.02-NEVE NA BAHIA (Gilberto Gil)
Xuxa
Bruxa
Ducha de agua fria
No fogo do meu plexo solar
Loura
Moura
Neve na Bahia
Um furacao sem furia no meu marulhar
Agri
Doce
Tal um sal de fruta
Vos me agredais quanto vos me agredis
Ouca
Garca
Inocente e astuta
Clareza absoluta e mil ardis
Gueixa disfarcada de boneca
Sudanesa travestida de alema
Porque sois o misterio a luz do dia?
Porque sois sempre a noite de manha?
Ainda bem que sois fruta no meu sonho
A velha obviedade da maca
Que escolho e colho e mordo na bochecha, Xuxa
E tendes travo e gosto de avela
Vick
Vapor
Lenta anestesia
Pimenta na garrafa de isopor
Xuxa
Bruxa
Ouro de alquimia
Sois flecha de um cupido pos-amor
B.03-YA OLOKUN (Monica Millet e Fred Vieira)
Ribeira eu peco licenca
Pra as aguas do mar, Olokun
Ye Olokun, Ya Olokun
Sao pontos de areia
Os destinos brilhando num so Olokun
Ye Olokun, Ya Olokun
As aguas salgadas
Os homens sujaram o mar, Olokun
Ye Olokun, Ya Olokun
Vamos salvar o dique do tororo
Bahia de todos os santos
Sol e areia, ea, ea, ea
Perpetuar aqueles que nos dao
A mare vazia e tambem a mare cheia
B.04-O FIM DA HISTORIA (Gilberto Gil)
Nao creio que o tempo
venha comprovar
nem negar que a historia
possa se acabar
Basta ver que um povo
Derruba um czar
Derruba de novo
Quem pos no lugar
E como se o livro dos tempos
Pudesse ser lido traz pra frente
frente pra traz
Vem a historia, escreve um capitulo
Cujo titulo pode ser “Nunca Mais”
Vem o tempo e elege outra historia
Que escreve outra parte
Que se chama “Nunca E Demais”
“Nunca Mais”, “Nunca E Demais”, “Nunca Mais”
“Nunca E Demais” e assim por diante tanto faz
Indiferente se o livro e lido
De traz pra frente
Ou lido de frente pra traz
Quantos muros ergam
Como o de Berlim
Por mais que perdurem
Sempre terao fim
E assim por diante
Nunca vai parar
Seja neste mundo
Ou em qualquer lugar
Por isso e que um cangaceiro
Sera sempre anjo e capeta, bandido e heroi
Deu-se noticia do fim do cangaco
E a noticia foi o estardalhaco que foi
Passaram-se os anos eis que um plebicito
Ressucita o mito que nao se destroi
Oi Lampiao sim, Lampiao nao, Lampiao talvez
Lampiao faz bem, Lampiao doi
Sempre o pirao de farinha da historia
E a farinha e o moinho que o tempo moi
Tantos cangaceiros
Como Lampiao
Por mais que se matem
Sempre voltarao
E assim por diante
Nunca vai parar
Inferno de Dante
Ceu de Jeova
B.05-DE ONDE VEM O BAIAO (Gilberto Gil)
Debaixo
Do barro do chao
Da pista onde se danca
Suspira uma sustanca
Sustentada por um sopro divino
Que sobe pelos pes da gente
E de repente se lanca
Pela sanfona afora
Ate o coracao do menino
Debaixo
Do barro do chao
Da pista onde se danca
E como se Deus
Irradiasse uma forte energia
Que sobre pelo chao
E se transforma
Em ondas de baiao
Xaxado e xote
Que balanca tranca
Do cabelo da menina
E quanta alegria
De onde e que vem o baiao?
Vem debaixo
Do barro do chao
De onde e que vem
O xote e o xaxado?
Vem deibaixo
Do barro do chao
De onde vem a esperanca
A sustanca espalhando
O verde dos teus olhos
Pela plantacao
O o vem debaixo do barro do chao